ENTRE RAÍZES E ANTENAS
Enfim…a residência na derradeira estação de Comunic-Ação, depois de uma intensa jornada de três meses por todo o Norte do Brasil, não podia ser mais surpreendente, rica e promissora.
Chegamos literalmente ao extremo; estamos entre os netos e netas de Makunaima, na única capital localizada totalmente acima da Linha do Equador, Boa Vista no estado de Roraima. Aqui verificamos de fato, que quanto mais enraizado em sua cultura vive um povo, mais ampla, sofisticada e eficaz sua capacidade de se comunicar e dialogar com as necessidades de transformação da atualidade. Encontramos com os indígenas, não nas aldeias mas na cidade, agora protagonizando sua história e nos oferecendo um modelo de educomunicação paradigmático, para entender e atender com sabedoria os desafios contemporâneos.
A população indígena de Roraima chega a 49.637 pessoas, segundo o Censo de 2010, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sendo que o estado possui 450.479 habitantes. A força dessa diversidade é composta por etnias como Macuxi, Wapixana, Ingaricó, Yanomami, Wami-Atroari, Wai-Wai, Taurepang, Patamona, Yekuana e Sapará. Em unidade, eles têm sido capazes de construir um projeto na Universidade Federal de Roraima, que é referência nacional. Há dez anos, foi criado o Instituto Insikiran, que através de três cursos de graduação superior – Licenciatura Intercultural, Gestão Territorial Indígena e Gestão em Saúde Coletiva, está formando indígenas, contando atualmente com cerca de trezentos estudantes, sendo metade dos atuais professores, graduados no próprio instituto.
Malocão na UFRR Esta não é qualquer notícia; é “A” notícia, em maiúsculo mesmo; já que se trata de uma população ainda excluída, passados mais de 500 anos desde Cabral; e no contexto de uma região igualmente excluída, tanto das grades currículares do ensino em todos os níveis, quanto das pautas dos ditos, grandes veículos de comunicação de massa. Mesmo em plena era tecnólogica e de democratização da informação, a imprensa continua pautando e cobrindo tão somente “a pobreza de uma rica região”, “a violência no campo” ou “a triste devastação amazônica”; quando muito, o exotismo dos povos da floresta, diga-se de passagem, para ser consumido “ao gosto do freguês”.
O impactante e paradoxal desta alienação generalizada é que graças a essa “invisibilidade”, ainda temos na Amazônia a maior diversidade genética e cultural do planeta, o que permite a existência de projetos como o Insikiran, que está conseguindo com muito, muito trabalho, promover o tão necessário, avançado e promissor diálogo entre “raízes e antenas”, ou seja entre Tradição e Ciência.
Para a presidente da Organização Indígena Taurepang, Wapichana e Macuxi, Kapoipa’ Macuxi (Zenaide Peres), o aprendizado e a comunicação por meio das linguagens humanas como a fala original, as danças, os cantos, as brincadeiras, a pintura corporal, os grafismos, o artesanato, a medicina nativa, as crenças e ainda a alimentação, a vida em comunidade e as relações com a natureza, contextualizados no cotidiano, lhes permite a integração da teoria com a prática; das culturas indígenas com a cultura do não-índio. E Pittura’ (Vítor Francisco Juvêncio), filho de pai Macuxi e mãe Wapichana, ex-aluno e agora professor de línguas indígenas, acaba de lançar uma gramática da língua Macuxi, diz: “não há cultura superior nem inferior e querendo ou não, todos brasileiros e brasileiras, têm no código do DNA a memória da ancestralidade indígena, só precisa ser recuperada; e a escola que tanto atrapalhou esse processo no Kapoipa´Macuxi – Caxiri (bebida à base de mandioca) passado, agora está podendo colaborar decisivamente, para que essa memória venha à tona”.
Os mitos são mediadores panorâmicos para nos comunicarmos com essa memória de muitas vozes e de muitos tempos, que foi sufocada pelo colonialismo. Makunaima (eles pronunciam Macunáima) é um desses; figura mítica sagrada para os indígenas de Roraima, que conta sobre um índio guerreiro gerado do amor quase impossível entre o Sol e a Lua, pois quando a Lua nascia, era hora do Sol se pôr. Um dia, por conta de um eclipse, o pôr do sol atrasa, finalmente os dois se encontram e Makunaima é fecundado.
Maku (mau) ima (grande) – o grande mau, na verdade é um poderoso deus da natureza, que alimenta todo seu povo com variedade e abundância de frutos, através da “Árvore de Todos os Frutos”; mas só ele tem autoridade para colhê-las. Passadas algumas luas porém, surge a ganância e a inveja e essa regra é desrespeitada, fazendo com que Makunaima manifeste toda sua fúria e num ato de justiça, lança fogo sobre a floresta e petrifica as árvores; sem chance de sobrevivência, o povo foge.
Mário de Andrade em uma de suas obras clássicas, mostra Macunaíma como um herói sem caráter, cujo pai não está presente na história e a mãe ele mata, achando que é uma “veada parida”. O sociólogo e psicanalista Roberto Gambini, enxerga nesta narrativa, uma metáfora da alma brasileira; originalmente filhos de um pai europeu ausente que, após invadir a mãe terra, violenta, engravida a índia e parte em busca de novas riquezas e aventuras.
Assim, impregnados e inconscientes dessa memória, não sabemos quem somos -não falamos nossa língua materna, não praticamos nossas tradições, nossa espiritualidade original, ortanto totalmente órfãos de nossa cultura e seguimos fragmentados, com uma profunda baixa estima, incapazes de operar a integração entre as etnias que formam a base de nossa sociedade: o índio, o negro e o Pittura´ branco. E mais, com a expectativa de que todos os nossos problemas sociais ou pessoais sejam resolvidos por algo exterior a nós – realizações intelectuais e materiais; os políticos e a economia; a absorção da cultura estrangeira, seja esta a do Sul pelos que são do Norte do país, ou pelos brasileiros em relação a dos europeus e norte americanos, por exemplo.
A sensação é de não pertencimento, tão distanciados que estamos dos nossos ancestrais saberes tão bem elaborados, coerentes, criativos e obviamente diferentes do racional pensamento ocidental. Perdemos conhecimentos sobre a natureza das coisas – do nosso corpo e do corpo da terra; dos ecossistemas ambientais; das relações e dos valores humanos; do sagrado, ou seja de tudo que originalmente somos nós.
Na história de Mário de Andrade essa perda se traduz numa aventura pela busca da Muiraquitã – pedras arqueológicas em forma de batráquios, que pertencem à lenda da Icamiabas, índias guerreiras da região do Tapajós/PA, que teriam vivido isoladas da presença masculina, só permitida durante rituais de fertilidade, nos quais o índio escolhido, ganhava uma muiraquitã produzida por elas. É motivo de honra ter sido escolhido por uma Icamiaba, então a pedra passa a ser exibida num colar, como um talismã que simboliza poder feminino, fertilidade, proteção e abundância. Sinal de que se realizou a tão almejada união entre os aparentemente opostos – os polos ameríndio e europeu; as raízes e as antenas; o masculino e o feminino, enfim a essência do que somos.
Durante os laboratórios de Comunic-Ação Criativa, quando praticamos as danças circulares tradicionais de nossas matrizes brasileiras, nos primeiros contatos nosso corpo expressa com muita eloquência o tamanho dessa separatividade. Sem nem entendermos por que, não queremos fazer certos movimentos por mais simples que sejam as danças; outras vezes até queremos, mas não temos ânimo para fazê-los e noutras a resistência é tanta, que quase instintivamente saímos da roda.
O curioso é que basta insistir honestamente na prática, para que se revele o poder e a força criativa dessas informações adormecidas, porém vivas em nosso corpo, através de suas múltiplas inteligências.
A prática constante dessas “velhas-novas” linguagens e inteligências humanas, também é uma orientação presente nas mais recentes descobertas no campo da neurociência. O estímulo do cérebro humano, através de maneiras diferentes e novas de fazer as coisas, junto com um estilo de vida saudável, cria novos caminhos de comunicação neural, resultando na ativação de potencialidades, e na descoberta e manifestação de habilidades criativas, independentemente da idade cronológica do indivíduo. Mais um exemplo de que Ciência e Tradição estão total e complementarmente alinhadas.
O canal para sintonizar e fazer as pazes com Makunaima está aberto, nossa muiraquitã nos espera e é muito bom saber que temos à disposição uma boa vista que nos permite enxergá-la. E para alcançá-la, nossos parentes indígenas de Roraima e sua expertise em Comunic-Ação Criativa ensinam por exemplo, sempre que possível fazer uma grande roda, cantar em alto e bom som a nossa aldeia e dançar nossa dança original, como a simples e sagrada Parixara, que fizemos com Maruapa Macuxi (Eldina Gabriel) da terra indígena Maturuca na Raposa Serra do Sol/RR, que diz mais ou menos assim: Xiu xiu tawon Pari guamore // Wanabon wanabon Pari guamore // Uriamoicanam Pari guamore = Pari guamore é um pássaro pequenino que fica no capim procurando comida e terra para se criar, como nós procuramos para levar a vida em frente, conta Maruapa. Podemos nos inspirar no pequenino e corajoso pari guamore e assumir a aventura de buscar o que nos pertence – nosso muiraquitã, nosso chão, as raízes e as antenas de nossa desconhecida alma brasileira.