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A VOZ DO MESTRE

Apolônio Melônio
Fev 01 2012

A VOZ DO MESTRE

Esta voz se fez carne no dia 23 de julho de 1918 em São João Batista, interior do Maranhão; no oitavo ano se fez canto, ritmo, toque, com a criação do Bumba-boi Ramalhete. Hoje aos 93 é rara memória, é lúcida sabedoria e autêntica liderança circular, conhecida como Mestre Apolônio Melônio.

Se puder desacelerar por alguns instantes no seu cotidiano, imagine-se em uma ‘aula magna’ no barracão e sede do Bumba-meu-boi da Floresta e do Tambor de Crioula de São Benedito em São Luís/MA.

Neste lugar, o Mestre iniciou sua vivencia na cidade grande quando a casa ainda era de barro e coberta de palha nos anos 50. Hoje, tudo em alvenaria, abriga uma verdadeira escola, capaz de abraçar disciplinas diversas – Valores humanos, Cultura – Memória, Política, Economia, Artes, Brincadeira e Espiritualidade, como propõe o paradigma transdisciplinar. A comunidade reconhecida no ano 2000 pelo IBGE como o maior quilombo urbano da América Latina, traz o nome que lhe faz jus – Liberdade.      

Os diversos assuntos brotam da voz do mestre com autoconfiança, vigor e sabedoria contagiantes. Após mais de três imperceptíveis horas, a gente sai de uma aula-entrevista dessas, com a matéria na ponta-da-língua e com aquela  vontade de “quero-mais”, raramente provocada pelas pedagogias ocidentais do ensino formal na atualidade.

Mestre Apolônio nunca ouviu falar do paradigma Sumak Kawsay (Bem Viver) de origem Aymara/Quéchua, que sustenta um modelo de desenvolvimento baseado em raízes – reconhecer os valores contidos na memória e tradição dos povos; e antenas –  organização dos sistemas econômicos, políticos, sócio-culturais e ambientais de forma sustentável – o Bem Viver, contrapondo o modelo neo-liberal do “viver melhor” – consumindo mais. Entretanto, as lições, princípios, idéias, ações e atitudes do Mestre, ensinam exatamente isso – Sumak Kawsay.

Ouça a voz paradigmática deste velho sábio, pedagogo por natureza e comunicador por excelência, sobre temas da atualidade:

Desenvolvimento Humano:

Ms Apolônio: Os primeiros professores são pai e mãe; é o costume da casa. Depois dos 15 anos, a gente vai tomando uso da razão para melhorar. Quem tem condições  continua estudando; quem não tem vira trabalhador e a tendência é ser pai de família, dar condições aos seus produtos, seja filho, irmão, cunhado ou qualquer parente. Eu fui um desses.

Vivi quase 50 anos com uma mulher que só saiu daqui quando morreu. Ela era analfabeta de pai e mãe; nunca quis estudar, mas uma dona de casa e tanto… Agora, a Nadir (45) que está comigo desde 1980 é formada em Turismo; nossas duas filhas – Talyene (24) em Administração e Julyene (18) estuda Química Industrial na Federal do Maranhão. No fim da história eu que sou o analfabeto. Mas o que é um analfabeto? Eu compreendo as coisas, olho, escuto, considero, aprendo e respeito acima de tudo. Minhas filhas, eu gosto de dá a benção e um cheiro na testa delas, se não der o cheiro, fica estranho, sinto falta.

Quem tá na riqueza às vezes nunca tomou conhecimento que existia a pobreza e quem vem da pobreza para a nobreza conhece os dois lados. E tem o rico que já foi pobre, mas não ajuda ninguém porque tem medo de ficar pobre. Diz o ditado ‘quem tem água troca pelo fogo’; e é mesmo, porque para esfriar é preciso água, mas pra cozinhar uma comida tem que ser com fogo, não é? então se troca o fogo pela água e todo mundo fica feliz.

Projeto Político – Coletividade na comunidade

Ms Apolônio: Trabalhei como horteleiro, carroceiro, caminhoneiro e estiva marítima, mas era o  Bumba-boi e o Tambor de Crioula, que me inspiravam a tocar a vida. Sou um cantor que nunca entrei num boi já feito, mesmo com 08 anos comecei do zero. Pensava – não tem boi, mas tem um povo, então cantamos uma toada, pra reunir um grupo e desse grupo, formamos o bumba-boi e fazemos tudo pra não ser o pior. O dono do boi dava a cachaça e o cumê. Cada bailante comprava sua roupa, fazia sua indumentária e o governo estava fora disso; tinha época que a gente nem entrava no centro da cidade. Brinquei muito de graça, pra associar o boi.

No dia que nosso boi brinca, mando comprar 10kg de carne, pro meu bailante comer um cozido, pra brincar com a barriga cheia e alegre. No Tambor de crioula, tem um almoção, pra um grupo de umas 150 pessoas.

Bumba-boi eu dou conta, pouca gente é melhor até pra compor o grupo no terreiro; se acomoda em qualquer lugar, num auditório, numa sala de visita e um boi com mais de 160 pessoas, com nosso material, um chapéu desses…fica muito difícil. Ainda participo das decisões do boi ao lado de Nadir; quando vejo que ela quer fazer algo, que não vai dar certo aí eu oriento.

Perspectiva: Projetos locais, comunitários e regionais

Ms Apolônio: Tudo meu era para melhorar a apresentação no bumba-boi e manter o Tambor de Crioula para São Benedito. Minha casa sempre viveu cheia desde criança. Na casa de meus padrinhos na Semana Santa, era duas camadas de rede de tanta gente pra dormir. Mas, nosso futuro está comprometido, porque a matéria-prima está acabando. Por isso trabalho com as crianças, jovens e adultos aproveitando a matéria que temos – o talentos dos indivíduos. Nunca contratei um cantor, primeiro quem cantava era eu, depois fui aproveitando os talentos. Mesmo quando ainda estava em forma e via que um menino tinha talento, entregava pra ele cantar.

A vida pra quem está na cultura, o que tem de menos é dinheiro, mas acho que é um povo mais alegre, que se respeita melhor e são mais caprichosos, fazem tudo pra se apresentar bonito. Ainda criança, eu botava meu chapéu caprichado; o primeirinho era com pena de galo – a maior que tinha; de galinha, de garça e guará; saia andando pela beirada e as pessoas me chamavam pra cantar uma toada e eu ia todo convencido. As fitas eram feitas com palha da pindoba e tudo a gente criava a partir do que tinha na natureza.

Eu queria ensinar e aprender com o que a criançada tinha na cabeça, pensava como elas podiam me ajudar a formar um grupo. Hoje os participantes do nosso boi  têm oficinas de bordado, percussão, dança e informática. Temos vários jovens que se recuperaram bordando, tocando tambor de crioula, dançando, cantando toada, fazendo instrumentos de percussão. Uns se tornaram pedreiros, pintores…estão cuidando da vida; outros nem vem mais aqui, mas se estão bem, fico feliz. Assim, fazemos de tudo para que os produtos melhores dessa família (comunidade) cheguem em outras comunidades…

História Natural – Vida em Movimento

Ms Apolônio: Agora já não estou fazendo muito; estou dando trabalho pra quem faz (risos) é a continuação da vida… Mas, nossa gloria é que nossos alunos sejam melhores do que nós.

Eu respeito os mestres (de cultura tradicional), porque não herdaram nada de ninguém; eles têm uma memória viva e uma compreensão da vida.  Ele olha uma coisa, analisa e armazena (memoriza). Se não gosta critica, se gosta enaltece e acumula; quando quer vai lá e busca a cantiga…

Tem pessoas com uma voz bonita que não tem pulso pra compor, pra organizar, mas é uma pessoa que a gente pode aproveitar. Acho que temos dois lados, se um está afetado, mas o outro está bom é melhor trabalhar em cima do bom, pra melhorar o que está ruim, pra formar os dois bons. Essa é a mente nossa. 

Eu não quero ser mestre de quem não quer aprender. Eu tenho obrigação de passar o que sei pros meus, mas não saio daqui pra grupo nenhum, pra ensinar, sem ser chamado. Tem gente que bota toada bonita, mas ele mesmo estraga, falta tonalizar. Quando o cordão levanta a toada, que o batuque sai e entrega pra ele repetir, pronto… é um fracasso. Uma pessoa dessas se vier pro nosso grupo, depois do primeiro ano, está pronto, porque Anastácio (do Boi da Floresta) também não sabia cantar e agora é o mandante do Boi.

Degradação Ambiental:

Ms Apolônio: Dá pra gente achar alguma coisa? A natureza é que determina tudo!

Outras Formas de Felicidade

Ms Apolônio: Cantar e dançar essas coisas, faz muito bem. As pessoas recebem as felicidades ocultas . O pagador de promessa recebe uma graça – quando era criança jogava meu pião e se perdia no mato, o santo que eu me apegava, sabe qual era? São Longuinho – e tem esse santo?(risos…) Eu achava que sim, porque tinha fé – e sempre achava meu pião…

O cantador, quando agrada o público, parece que não falta nada pra gente…; é tanta namorada…agora namorada nunca me tirou de dentro do cordão do boi – ‘me espera, depois vou falar contigo…’(gargalhada…)

Todas as cantigas populares tem uma motivação; ninguém canta sem estar se lembrando de alguma coisa que viveu. Digo pra quem é compositor, se você quer cantar pra outro cantor, canta o que ele tem de bom; elogia, respeita e desafia ele pra vim cantar contigo, mas botar defeito não. O merecimento de nosso boi é a origem dos cantores,  elogiar o grupo dele e as coisas boas que ele está fazendo. Se eu gosto de mim eu não posso ter raiva dos outros cantores. Querer bem não é obrigado, mas respeitar seu colega é. Você não fala mal dele e ele não fala de você, dá pra viver.

Nós cantamos a vida. Mudar essa idéia de ser uma coisa ruim (não sei nem explicar como é isso, porque nunca me vi nessa situação), para imitar os que já são bons. Quem cometeu crimes, fez maldades na minha cidade eu não sei; minhas lembranças são todas sadias.

Eu tive uma mulher, gordona – bonita, simpática e andava muito pra encontrar com ela e ainda atravessava um riacho pra pegar um barco. Aí eu cantava, como quem vinha cansado, mas não desistia…

Maria, oh Maria / Maria meu botão de rosa / Maria meu bem-querer/ Hoje eu vou embora,mas amanhã eu volto/   

 Oh Maria, pra vim te ver…

Agora tenho uma toada de acordo com a situação que está acontecendo: “meu Deus não leve Nadir para o céu/ ela é quem cuida de mim / e se ela for eu vou também/ nunca matei, nunca roubei, nunca enganei ninguém/ pergunta quantos anos ele tem/ só falta sete pra cem…”  

*Comunicadora Social; Jornalista; Arteducadora ; Criadora da metodologia Comunic-Ação Criativa; Pesquisadora das Danças Sagradas e Tradições dos Povos da Amazônia.

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