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BRINCADEIRA DA TAINHA

Jun 01 2009

BRINCADEIRA DA TAINHA

TAINHA, UMA BRINCADEIRA PRA LEVAR A SÉRIO COM BOM HUMOR

O PASSADO

Há mais de cinqüenta anos, pescadores da Zona Bragantina e guardiões dessas águas da Amazônia brasileira, no Estado do Pará, já manifestavam cuidadosa preocupação com o ambiente, a cultura e a interdependência dessas dimensões que afetam a vida de cada indivíduo e conseqüentemente da comunidade global.

As águas que representavam e representam o território da lida diária para garantir o sustento dessas famílias, também é fonte de afirmação da identidade, de preservação do ambiente, de cultivo da arte, de valores humanos universais e de fertilidade criativa, manifesta pelos cantos, ritmos, danças e brincadeiras, que esses povos produzem espontaneamente com tanta beleza e sabedoria. Trata-se de uma sofisticada ferramenta de comunicação absolutamente transformadora.

A BRINCADEIRA

Na brincadeira da Tainha, um auto popular conhecido também como “cordão de bicho” inclui  teatro, dança  e música. Segundo Ana do Porto, nasceu no Município de Quatipuru/PA, com Dona Alexandrina. sua bisavó. Ana que hoje é Maruja e junto com  Raimundo Borges, o Mestre Come Barro, tamboreiro  da Marujada, “pescaram” a Tainha com a força da tradição oral amazônica e suas memórias  corporais, para o “bem de todos e felicidade geral da nação…”Afinal, como vive uma nação sem identidade?

Tocados pela comovente vontade de revelar essa tradição e seus valores às novas gerações, Ana do Porto e Come Barro junto com a Irmandade Maria Pretinha, formado por aproximadamente quarenta integrantes entre crianças, jovens, homens, mulheres, idosos, marujos,  marujas e músicos tradicionais de Quatipuru. Juntos, conseguem apoio da Prefeitura Municipal local, da Secretaria de Cultura do Pará,  da Fundação Cultural Tancredo Neves, da ONG Mana-Maní e mobilizam um grande público para assistir o esperado “desencantamento” da famosa Tainha, com direito a uma enorme fogueira, como se fazia antigamente; e a participação de três grupos de cultura que vieram especialmente da Vila de Boa Vista,  para preparar o clima até a chegada da Tainha na Quadra do Merico, onde aconteceu a brincadeira.

Conta a história que em zona proibida pela Marinha para a pesca da Tainha, pescadores violam a lei, mas se dão mal. Além de não conseguirem fisgar nenhuma delas, ainda são presos e responsabilizados pelo sumiço do peixe daquelas águas. Para os soldados, a Tainha está encantada e orientam os Pescadores a falar com o Capataz,  que talvez tenha uma solução.

O Capataz  dá a dica de uma velha que benze, reza e “mexe com essas coisas”… Os Pescadores encontram Dona Fogência e prometem uma grande quantia em dinheiro se ela conseguir trazer a Tainha de volta.  A velha vai na morada da Tainha, só que pela idade avançada, não dá conta do recado. Como sábia que é, tem o poder de ir ao encontro da Fada, para pedir ajuda. A Fada por sua vez, canta e manipula sua varinha de condão…

Eu sou uma linda Fada

    Que Deus na Terra deixou

      Vim trabalhar porque sei

        A favor dos Pescador

Vou indo nessa estrada

Até a beira do mar

Vou fazendo minhas preces

Pra quem nunca veio cá

Mas, a Fada não consegue e vai em busca da Sereia como última alternativa.

Minha varinha querida

Te lançarei sobre o mar

Faça com que a sereia

Venha comigo falar

A Sereia vem do fundo das águas e com seu poderoso canto, enfim “desencanta” a Tainha, e a entrega para a Fada; que a entrega para a Velha; que a entrega para o Pescador; que a entrega para o Capataz , que liberta o Pescador.

Te desencanta Tainha

Do grande mar da verdade

Sei que tu ficas brincando

Parto e levo saudade

O Pescador como ainda tem uma enorme dívida com a  Velha Sábia  e não tem um único tostão, oferece como pagamento uma Dança. Como ela é assanhada e adora dançar, tudo acaba numa divertida festa…

A COMUNIC-AÇÃO

Onde estamos nós, herdeiros e herdeiras dessa tradição? Onde habita e se expressa em nós o Pescador, a Velha Sábia, a Fada, a Sereia e a cobiçada Tainha na criação de nossas realidades individuais e coletivas?

Uma das mensagens que podemos decodificar a partir deste instrumento de Comunicação, diz respeito a uma dinâmica de relação com os ambientes externo e interno de cada um. As vezes tudo o que  pescador ou “buscador” interior –  que  impulsiona à ação, à luta pela sobrevivência, à satisfação das necessidades materiais  que é uma dinâmica do masculino  precisa, para se realizar plenamente é de uma “Tainha”.  Esse ser que habita as águas, que é “morada” dos sentimentos, da receptividade e da arte, reconhecida por várias tradições e ciências como a dimensão do feminino. Mas, como o pescador não está consciente disso, de um modo geral não sabe como chegar na Tainha. Pesca em zona proibida, se emaranha na própria rede e tem que enfrentar águas nunca dantes navegadas, se quiser “desencantar”essa parte que “sumiu, ”, pois simplesmente a perdeu de vista.

Homens e mulheres, sequer desconfiam de sua “Velha Sábia” interior, aquela que já viveu muito… que conhece os segredos das rezas, das bençãos, das dicas aprendidas com aquelas que vieram antes – mães, avós e toda sua ancestralidade.

Também esquecem que dispõem de uma Fada, a bela moça que com o toque de sua varinha de condão, traz esperança, torna tudo possível e mais bonito, ainda que num  mundo de competição e violência,  visibilisado pelos meios de comunicação de massa.

Nessa jornada de enfrentamento do desconhecido é necessário ir mais fundo. Há que se ter persistência, fé e arte pra acessar os poderes da mulher, a madura Sereia. É pelo seu canto, o sedutor e decisivo chamado que a “Tainha” desencanta das profundezas das águas do Ser.

Todas elas – velha, fada e sereia, faces do feminino; e portanto canais de comunicação e expressão com a vida que estão a espera de uma chance pra se manifestar.  E os homens também sabem disso, afinal nessa metáfora é o Capataz quem dá o endereço da Velha Sábia aos Pescadores, que nela confiam e de boa vontade percorrem toda uma jornada de unidade entre masculino e feminino até trazer a Tainha de volta a Vida.

Na cobrança pelo serviço feito, depois de toda uma jornada de consciência, que inclui naturalmente a luta pela sobrevivência, o Pescador descobre enfim,  que mais do que dinheiro, tudo o que a velha sábia precisa pra se sentir plenamente recompensada é de uma simples Dança, ou seja o alimento  que nutre também as necessidades da alma.

Assim, a sustentabilidade ambiental do planeta, passa necessariamente pela preservação do patrimônio da cultura imaterial de um povo, que por sua vez se sustenta no comprometimento de cada individuo em desencantar sua própria Tainha. E a Sereia se despede lembrando e ensinando:

Eu me despeço de todos

Adeus até para o ano

Se ainda quiserem me ver

Vão lá fora no oceano

“Para o bem de todos e felicidade geral da nação” que em côro canta

 “Era um dia de rosa quando a maré repontou

Ficamos  alegres  e contentes quando a Tainha chegou…”

*Comunicadora Social, criadora de metodologia Comunic-Ação Criativa e Coordenadora de Comunicação da ONG Mana-Maní Círculo Aberto de Comunicação, Educação e Cultura

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