Buscar

CANTORIA PRO SANTO

Jul 10 2014

CANTORIA PRO SANTO

Desde o mês de Julho, quem vai a Cachoeira do Arari no arquipélago do Marajó/PA, tem uma ótima chance para adentrar e experimentar uma sonora estação de Comunic-Ação. É quando São Sebastião, o santo padroeiro dos vaqueiros, fazendeiros, pescadores e seringueiros da região, sai em comissão pela cidade e campos da microrregião do Arari.

Pelas ruas, pelas casas e campos afora, quatro foliões da comissão do santo, devidamente acompanhados de seus instrumentos – violão, viola, tambor e triângulo, mantem viva, durante seis meses consecutivos, a chama de uma tradição, que tem garantido para essas populações um meio muito particular de se relacionarem com o sagrado e o profano da vida cotidiana.

Logo em Maio, esses “peregrinos educomunicadores”, levam o santo à capital paraense, Belém, onde durante todos os dias do mês realizam ladainhas na casa dos devotos. Descansam um mês e em Julho recomeçam por Cachoeira do Arari até comunidades muito longínquas da região, para retornarem só em 10 de Janeiro, quando começa a festividade que vai até o dia 20. É um retorno muito festejado, começa logo na porteira da cidade, com direito a três mastros – dos homens, das mulheres e das crianças; danças, brincadeiras e jogos. Tanta alegria se justifica, afinal foi cumprida uma longa e desafiante jornada.

É missão para poucos e corajosos homens. Não se trata de levar os “escolhidos” nem tão pouco qualquer pessoa que seja do sexo masculino. Vai quem decide e se compromete com essa caminhada pelo interior do Marajó e certamente de si mesmos. E mais, segundo o veterano Mestre-Sala, aquele que é o responsável pela comissão, toca qualquer instrumento e puxa as folias e ladainhas, Luis Santos, hoje não mais na comissão por motivos de saúde, não basta saber tocar e acompanhar as cantorias, há que ser bom de harmonia; diz ele “É muito difícil a gente se segurar com uma voz ruim do seu lado, tem que ter harmonia em todas as folias e ladainhas”.

Harmonia, com “H” maiúsculo mesmo – na voz e durante a peregrinação. O caminho é longo e seguido a pé, de canoa, cavalo, burro, gado, búfalo e há dias em que são rezadas até duas ladainhas. É preciso disposição também; capacidade de adaptação às intempéries da natureza, ao que é servido à mesa e às acomodações para dormir. Portanto, sem firmeza de propósito, desculpa é o que não falta pra desistir.

Eu louvarei o meu senhor

Eu louvarei com alegria

Eu louvarei oh meu senhor

Eu louvarei o filho da Virgem Maria

Fico pensando que todos esses critérios são tão humanizadores que por si só, já poderiam dar a esses homens, o título de “nobres cavaleiros marajoaras”. Eles são responsáveis por conectar terra e céu, ou se preferir os níveis concreto e material ao subjetivo e imaterial, para quem lhes abre as portas de suas casas. As mulheres, estão aparentemente em segundo plano, mas são elas que mantem esses homens com a vontade firme, oferecendo, entre outras infra-estruturas básicas para que tudo aconteça, a segunda voz nas cantorias durante as ladainhas; e é a dona da casa que cuida para que ao final das bênçãos, as fitas vermelhas e verdes que envolvem e são dedicadas a São Sebastião, sejam enroladas delicada e cuidadosamente até seus pés, para que todos os pedidos encaminhados nelas em forma de toques, beijos, gestos, benzeções e silenciosas conversas, sejam atendidos.

São Sebastião é, digamos, “muito dado” como se diz no Pará de uma pessoa popular. De mão em mão, parando nas ruas, por quem vai passando e pede sua benção ou entrando numa casa que não estava prevista. Considerado tão poderoso que é chamado de Glorioso São Sebastião; honrado como a expressão do amor, da compaixão, da prosperidade, da saúde e da paz, mas também respeitado por não desculpar aqueles que fazem e não cumprem suas promessas ou duvidam do seu poder. Dizem os marajoaras que para esses, o Glorioso sempre dá uma boa lição.

Na história, Sebastião foi um soldado romano do século III, pouco severo com os cristãos e por isso foi perseguido e morto traspassado por uma lança, depois de ter resistido a várias tentativas, a mando do imperador Diocleciano. Seu culto, como protetor contra as pestes teria iniciado no século IV e atingido seu ápice nos séculos XIV e XV, tanto na Igreja Católica como na Igreja ortodoxa. Dessa forma, o guerreiro Sebastião, amoroso e temido passa a habitar o imaginário dessas populações.

O culto a São Sebastião se tornou recentemente patrimônio imaterial e cultural do Marajó. Vivenciando de perto todo o processo, ritual e simbolismos que envolvem essa manifestação, podemos concordar, que para além da história e até mesmo da religião, é transformador. Enquanto proseio com o atual Mestre[1]Sala, Miguel Aires de Moraes, numa varanda em típica tarde ensolarada de Verão amazônico, sobre essas e outras dimensões de sua jornada de cantorias, passa na rua um outro cantar, o da “boca de ferro”, como se diz por aqui dos carros som, que neste instante em altíssimo decibel, anuncia um cortejo de boi-bumbá que logo mais sairia da pracinha de Cachoeira. Possuidor de um tom de voz grave e volumoso, pergunto ao mestre se ele acha que como porta-voz do santo, através das folias e ladainhas, dá pra sustentar sua voz e a mensagem que leva, diante de meios com frequências de som tão mais altos e potentes e com outros tantos apelos. Ele simplesmente para de falar e espera que o carro passe, então continua a conversa, contando sobre as graças que já viu serem alcançadas na sua vida e de tanta gente que cruzou suas caminhadas na comissão do santo. Eis a resposta a minha pergunta.

Não há termos de comparação, há o que se complementar, incluir. As vozes das cantorias são vivas, oferecem outras frequências possíveis de som, palavras cantadas, meios de comunicação, a serviço de outros níveis e propósitos de informação. O sagrado presente nas folias e ladainhas em latim caboclo, nos informa sobre nossa identidade mais pessoal, mais íntima; sobre nossa criatividade, sobre nossos dons naturais como por exemplo, cantar ou dançar; o profano por sua vez, presente na festa dos mastros, nas brincadeiras, nos jogos, nos informa de nossa identidade cultural, da nossa memória coletiva; e da nossa história .O que não impede que as “bocas de ferro” e as mais avançadas tecnologias de comunicação e informação cumpram também seus papéis enquanto veículos de comunicação, seja no interior ou nas grandes cidades, para dar visibilidade e fomentar essas tradições. A democratização desses meios na verdade, facilita nossa vida na medida em que estão à serviço de nossos interesses genuínos. O desafio portanto é nosso, de reconhecermos esses interesses, aqueles que não são impostos ou criados pelo mercado e pelas mídias de massa. O que nos pede um atencioso exercício de observação para qual lado nossas antenas costumam sintonizar; qual imagem estamos captando e a que práticas e investimentos culturais, sociais, econômicos e humanos, estão nos conduzindo.

Espirito Santo teu filho de Deus

Nos dá nossa vida

Unidade de paz

Espirito Santo da Virgem Maria

Nós te louvemos

Todos os dias

Posso dizer que para isso, a “cantoria pro santo” é uma estação de observação estratégica. A escuta dessas vozes que cantam numa “oitava superior”, obviamente estão numa frequência literal e simbolicamente menos audível, que as “boca de ferro”; que diga-se de passagem, nem sempre estão nos chamando para cortejos de bois-bumbás… Por outro lado, a cantoria pro santo, nos capacita a orientar nossas antenas na direção da vida criativa, da voz que precisamos ao nosso lado, para garantir a harmonia como diz o Mestre Luis. Aquela harmonia que sustenta a minha voz, que reconhece e incentiva a voz do outro e por isso, faz com que a voz coletiva se torne cada vez mais potente, encorpada e necessariamente diversa e estimulante, mesmo que seja à capela. O santo satisfeito, agradece!

0 Comentários
Compartilhar
Sem Comentários

Comentar