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NA FRONTEIRA DO BEM-VIVER

Ago 01 2014

NA FRONTEIRA DO BEM-VIVER

E agora? Estamos exatamente numa fronteira entre países; qual linguagem humana presente nas tradições desses povos possibilita a afirmação de suas identidades, a comunicação criativa e ao mesmo tempo integradora entre eles?

São aproximadamente 330 km entre a cidade de Porto Velho e Guajará Mirim conhecida como a Pérola do Mamoré, às margens do rio de mesmo nome no estado de Rondônia. Não mais que dez minutos de travessia à bordo de uma voadeira, separam as consideradas “cidades gêmeas” Guajará Mirim no Brasil Guayaramirim na Bolívia.

Chegamos aqui para vivenciar mais uma forte tradição do Divino Espírito Santo no Norte do Brasil; dessa vez no Vale do Guaporé. Como era de se esperar, aqui a história é outra, pois quando se trata de cultura popular tradicional, tem novidade na certa, daquelas que estimulam a nossa curiosidade e as mais profundas necessidades de inventar e reinventar a vida. O Seu Eurico Evangelista Coelho, devoto ativo na organização da festa, nos conta com detalhes e nos mostra como se dá essa manifestação nas entranhas das águas do Vale do Guaporé e os efeitos dessa vivência no cotidiano e na vida das pessoas.

Para começar, a população rondoniense é uma das mais diversificadas do Brasil, composta por migrantes vindos de todas as regiões. Um estado banhado por grandes rios pertencentes à bacia do Madeira, afluente do Amazonas. E Guajará[1]mirim é uma das cidades mais antigas; tem sua história intimamente ligada à construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, que funcionou de 1929 a 1970, para transportar a borracha.

No Vale do Guaporé, o que define a manifestação do Divino Espírito Santo, são as águas. As procissões de cidade em cidade acontecem no batelão, espécie de embarcação, na qual os 12 romeiros também chamados de remeiros e mais uma equipe de 18 pessoas com funções distintas, cumprem toda uma ritualística que vai desde as remadas levantando a água para o alto como símbolo do batismo, até reverências à lua crescente, que eles chamam de três meias-luas na frente da comunidade onde vai acontecer a festa, simbolizando o Pai, o Filho e o Espírito Santo,. As cores além das tradicionais branca e vermelha do Divino, também está presente a azul, simbolizando o céu, que juntamente com a água, compõe o cenário e o imaginário desta manifestação. Para completar, além da bandeira do Divino, outras duas seguem na proa – a brasileira e a boliviana, já que o Divino ancora dos dois lados dos países, conta com orgulho, Seu Eurico.

Aqui alcançamos uma das questões-chave sobre a cultura e a identidade amazônicas numa região de fronteira com outro país, no caso a Bolívia. Guajará-Mirim e Guayaramirim estão irremediavelmente juntas e misturadas, até no nome, o que uma separa a outra reúne; é como no ritmo natural da interdependência das relações sejam pessoais, sociais, econômicas, políticas, culturais e até biológicas. Chego à Guajará-Mirim justamente no dia 06 de Agosto, feriado por conta da proclamação da independência da Bolívia, do poder espanhol; ou seja, a cidade já incorporou a data no seu calendário e é o dia inteiro de festa com muita cultura tradicional; as voadeiras não param, travessia para lá e para cá sem parar.

Tudo começa nos rígidos e históricos trilhos da Estrada de Ferro Madeira[1]Mamoré, durante as negociações para a utilização dos rios de fronteira por parte da Bolívia, nos idos de 1867. É um exemplo concreto de que as fronteiras territoriais que foram criadas para delimitar as bases físicas e políticas, determinar a autonomia e a soberania dos estados e das nações na sociedade atual, não precisam restringir e separar as relações de boa vizinhança, de convivência, diálogo, troca e partilhas entre os povos, a ponto de comprometer inclusive, o pleno exercício da cidadania e da paz.

O mestre de cultura e benzedor, Sinforoso Arza Gualasua pode ser considerado uma referência de quem traz consigo essa compreensão e coloca em prática. É um boliviano de 70 anos de idade, radicado do lado brasileiro desde os 17 e após a morte dos pais no início da década de 80, realiza anualmente de 25 para 26 de Julho, a festa dedicada aos avós e as avôs, conforme aprendeu com seus antepassados. A festa acontece há mais de 300 anos na Bolívia em homenagem a São Joaquim e Santana, tidos como os avós de Jesus, segundo a tradição Cristã.

Seu Sinforoso conta que por aqui, tudo acontece graças ao jeito brasileiro de ser – doações de alimentos para a ceia, tecidos para os trajes típicos das mulheres e máscaras que os homens usam na Dança dos Toritos ou El Torito, o tourinho em espanhol. A hora dos Toritos é a mais esperada, reúne todas as gerações avôs, avós, filhos e netos tornando esse festejo, um poderoso instrumento de socialização e hibridismo cultural na Amazônia, entre os povos andinos e brasileiros.

As mulheres, usam vestidos e chapéus de camponesas, enfeitados de formas diversas com fitas coloridas; os homens, colocam a máscara do torito e um chocalho nas pernas; e a dança parece ensinar com simplicidade e alegria o jeito de alcançar essa integração entre as culturas e sobretudo entre as pessoas, principalmente no movimento das mulheres. De mãos dadas, em círculo ou em linha, elas balançam os braços para frente e para trás, como se fossem barquinhas de balanço – brinquedo muito presente nos arraiais das pequenas cidades ribeirinhas na região Norte. Enquanto os homens soltos no meio delas, fazem gracejos e movimentos, como pequenos touros soltando tanto a cabeça, quanto com o corpo inteiro; o que para a racionalidade masculina, diga-se de passagem, é um ótimo e indicado exercício de integração entre a mente e o coração; sua inteireza.

Essa irmandade entre Bolívia e Brasil não acaba aí; chega também ao paladar. Em Guajará-Mirim, temos à disposição, deliciosas saltenhas, uma espécie de pastel que vem recheado de frango desfiado e um caldo dentro muito bem temperado. Para beber, a chicha – um suco feito do milho duro que o casal de brasileiros, Delmira Santiago e Edmundo Flores, fazem questão de produzir artesanalmente, batido no pilão, peneirado, cozido, coado em pano de algodão e temperado com folha de figo ou canela e adoçado a gosto; um verdadeiro néctar e para as mulheres que estão amamentando, dizem ser um potente estimulante para a produção de leite. Vale registrar também o Marradito, uma espécie de arroz de carreteiro refinado – arroz cozido com carne seca ou jabá, banana comprida frita e para completar, a irresistível forofinha de mandioca para brasileiro nenhum botar defeito. Independentemente das dietas alimentares, que cada vez mais nos oferecem cardápios diversificados, com ou sem a utilização de carnes, a alimentação certamente é um elemento fundamental para o fortalecimento de nossas raízes, real e simbolicamente.

Saímos daqui com a certeza de que precisamos ir além das fronteiras demarcadas nos mapas; que é uma atitude inteligente parar de insistir em separar, o que por natureza é inseparável. Os costumes, as culturas e até as crenças podem ser diferentes e é prudente e aconselhável que assim sejam cultivadas, pelo bem da estética criativa e da ética sustentável. É o lugar propício para colocar em prática um conceito que os povos andinos, tão sabiamente chamam de bem-viver, que é diferente de qualidade de vida, pois não está sustentado no paradigma da produção e do consumo indiscriminados.

Para os andinos, o bem-viver é um conceito tão fundamental, que está presente até na constituição, tanto da Bolívia, quanto do Equador e preconiza basicamente, sabedoria. Sabedoria para comer e beber, sem agredir o próprio corpo e o corpo da Mãe Terra; para falar construtivamente, atingindo o coração do outro; para escutar não só com os ouvidos, mas com o corpo inteiro, pois todos os seres enviam mensagens; para pensar, mais com o coração do que com a cabeça; para meditar guardando tempos de silêncio e introspecção; para caminhar, pois nunca caminhamos sós, mas com o sol, a lua e acompanhados pelos nossos ancestrais; para trabalhar como autorealização e não como um fardo; para amar e ser amado – reciprocidade; e até para saber dançar no ritmo da natureza e do universo; por fim dar e receber, pois a vida surge da interação dessas forças.

Reaprender a fazer alianças interculturais entre os povos, mais do que um meio de fortalecimento e reconhecimento de suas raízes ancestrais; é também um instrumento de preservação da natureza e de ampliação dos territórios não só geográficos, mas também mentais, para compreendermos que afinal de contas a terra não tem dono; que as águas do rio Mamoré não separam as cidades gêmeas; ele as une como um tecido forte e fluido, no qual podemos navegar com o Divino Espírito Santo e aportando em terras sem fronteiras, também dançar El Torito, para urgentemente recuperar a Cultura da Vida e recordar como é bom bem-viver.

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