Buscar

NAS ASAS DO DIVINO

Ago 07 2014

NAS ASAS DO DIVINO

Voamos para esta estação nas asas de uma ave; símbolo da liberdade e da expansão da consciência, presente em todas as culturas e tradições; em grego, a palavra ave é sinônimo de presságio e de mensagem do céu. A águia, a fênix, o falcão e a pomba por exemplo, são seres que voam e expressam de forma privilegiada a comunicação, o diálogo, o trânsito entre os planos horizontal e vertical; entre o céu e a terra, sem limites.

Sendo assim, qual poderia ser a mensagem desta comunicação? Neste caso, a ave é a pomba branca, símbolo muito antigo dos festejos realizados para o Divino Espírito Santo, em tempos de colheita no calendário agrícola do Hemisfério Norte, na esperança de uma nova era para o mundo dos homens. Conta a história, que no Brasil, esses festejos devem ter começado nas primeiras décadas do século XIV.

Hoje, temos no estado do Tocantins, desde quando ainda era Goiás, uma das heranças mais fortes dessa tradição, na cidade de Natividade a 218 Km da capital, Palmas. Começa no domingo de Páscoa com a saída de três folias, que representam o Pai, o Filho e o Espírito Santo, cada uma formada por cerca de quinze homens montados a cavalo, percorrendo as casas dos devotos em busca de donativos para a festa. São os chamados Giros, que durante 40 dias seguem em direções diferentes entre sertões e municípios, chegando até Palmas – o Giro de Cima, o Giro do Outro Lado e o Giro das Gerais.

Cravada no pé de uma serra, Natividade é ininterruptamente refrescada por ventos que dia e noite fazem até a terra voar por aqui, desassossegando as donas de casa, sempre as voltas com vassouras nas mãos. Mas é esse mesmo vento que alivia generosamente o calor da região e deve ajudar a manter o ambiente e as mentes arejadas, mesmo nas situações sociais que desafiam a quietude até de cidades mais pacatas, com uma população de aproximadamente nove mil habitantes, como é o caso; para as aves então, só pode ser o paraíso.

Enfim, estamos numa cidade histórica de meados do século XVII, que se tornou patrimônio nacional em 1987, preservando memórias de uma grande população negra que trabalhou arduamente para os portugueses, na extração do ouro, única atividade econômica durante 40 anos. Mas o maior patrimônio que o povo negro nos deixou neste pedaço da região Norte, é tão visível quanto as jóias artesanais ainda presentes nas ourivesarias tradicionais, porém de valor incomensurável, acessível a todos indistintamente e ainda preservado no museu, na memória e no corpo dos mais antigos; e também pelo trabalho das novas gerações – a dança, a música, os instrumentos, as técnicas de construção, a natureza e até sabores como o curioso biscoito artesanal amor-perfeito, devidamente produzido no forno à lenha, como o da Tia Naninha.

Neste contexto, me sentir convidada a voar nas asas do “divino” não foi difícil. Logo na chegada, vejo um simples cartaz estampado na porta de uma casa no centro histórico e imediatamente me sinto chamada a fotografá-lo. É quando simultaneamente a porta se abre e me aparece a figura de dona Lení de Oliveira. Senhora de um sorriso espontâneo e acolhedor; devota do Divino Espírito Santo, se revela como se poderia dizer, o “divino no humano”, tamanha sua Dona Lení de Oliveira Dona Lení de Oliveira Instrumentos da Suça generosidade, atenção despretensiosa e sem nunca ter me visto antes, me convidar para entrar, contar histórias e ensinar rotas seguras para voos, pousos e importantes comunic-ações.

Eis uma estação do passado, com vistas a um futuro mais humano; onde homens como o poeta popular Filadelfo Nunes da Silva 69 anos, diz bem humorado ter 138, porque conta os dias e as noites e se autodenomina “Sonhador Ressuscitado”, desde que começou segundo ele, a rabiscar garatujas, ou seja escrever poesias; o pseudônimo revela sua crença de que sonhar é ao mesmo tempo ressuscitar, reviver.

Um lugar, onde mulheres como Felizberta Pereira da Silva, faz jus ao nome que tem. Sorridente e confiante, conta com orgulho ser uma autêntica mameluca – neta de escravos por parte de pai e de índios por parte de mãe, resolveu que a Suça, , dançada por ela desde menina, voltaria a ter seu lugar de honra nos festejos do Divino em Natividade e no ano 2000 criou o grupo Mãe Ana, homenagem a uma escrava que virou lenda na cidade, curando muita gente com ervas e benzeções. Desde então, após as rezas e ladainhas nos pousos (residências onde as folias param) dos Giros e na esperada levantação do mastro, a Suça como manda a tradição é garantida.

A Suça, Súcia ou Sússia é um bailado circular sensual; convite irrecusável para que homens e mulheres se reencontrem em grande estilo. O homem cerca a mulher, tentando conquistá-la a todo custo, chegando ajoelhar-se para tirar-lhe o chapéu; a mulher por sua vez, entra no jogo se fazendo de difícil, mas o que ela quer mesmo é provocá-lo ainda mais com giros e remelexos, segurando na cintura, a barra da saia rodada. Tradicionalmente tocada em um tambor feito de barro, outro de tronco de árvore bem larga, chamado de ronca ou tambor de rabo, uma espécie de cuíca gigante e o pandeiro que sempre é colocado ao fogo para esquentar antes da dança começar. Não é à toa que quando a Suça pega fogo, são raros aqueles e aquelas de todas as idades, que não são contagiados.

No ponto alto da roda é a hora da jiquitaia, alusão a uma formiguinha vermelha, danada de doída, que coça, arde e incomoda tanto, que as pessoas saem se coçando, sapateando e passando as mãos no corpo impaciente e divertidamente, conta Felizberta.

A formiga que dói é a jiquitaia

Ela morde, ela cossa, ela esconde na paia

Ela morde no pé e debaixo da saia

A formiga que dói é a jiquitaia

Seu Noaldo e Dona Zeneide, conhecida como Caçula devem ter dançado Suça e picados pela jiquitaia, porque taí um casal que se reencontrou. Ele, marceneiro de mão cheia, é um dos que assume, com a maior alegria a construção do mastro da festa. Ela, uma cozinheira e artesã de mãos de fada, que assume junto com uma amiga a responsabilidade de enfeitar o mastro de aproximadamente 6 metros de altura e 60 quilos, com bandeirolas brancas e vermelhas – as cores do Divino, tão caprichadas que nem parecem artesanais. Nesse mastro, o povo carrega pelas ruas da cidade o capitão e a rainha do mastro, iluminados com candeias feitas de cera de abelha ou casca de laranja da terra cheias de azeite de mamona e um pavio. É uma verdadeira festa de alegria, de partilha e de fartura, porque cada um ajuda como pode e com o que tem de melhor. É servida gratuitamente a quem chegar, a tradicional paçoca, feita com carne seca pisada no pilão com farinha de mandioca; bolos e biscoitos diversos; garrafas e mais garrafas de licores de frutas da região, decoradas cuidadosamente uma a uma com crochê; tudo regado a muita suça, música e cantoria. São essas e tantas outras mensagens possíveis de captar em voo livre nas asas do “divino”, que ao pousar em terra novamente, mais do que divulgar, queremos cultivar, manter vivas essas tradições, na memória de nossas narrativas e imagens, mas sobretudo em nossas vivências cotidianas, sejam elas culturais, espirituais ou simples diversão. Porque assim, nos sentimos confiantes para criar um novo lugar para viver; não necessariamente geográfico, mas certamente divino, pois nos descobrimos uma andorinha a mais; e isso nos basta.

Andorinha, avoou beira-mar

Avoou, avoou eu vou mais ela

(cantiga da Suça)

0 Comentários
Compartilhar
Sem Comentários

Comentar