Buscar

NO MEIO DO MUNDO

Jun 01 2014

NO MEIO DO MUNDO

Bem aqui, a exatos zero graus entre os Hemisférios Norte e Sul, chego literalmente ao meio do mundo, onde passa a Linha do Equador na cidade de Macapá, Estado do Amapá. Uma estação de Comunic-Ação verdadeiramente inspiradora, onde caixas de marabaixo e tambores de batuque ainda ressoam tanto na cidade como no interior, para nos dizer de cultura, de arte, de espiritualidade e de educomunicação – temas estratégicos para orientar nossa vida pública e privada; social e pessoal.

Logo na impactante Fortaleza de São José, hoje patrimônio da humanidade, somos logo evados a imaginar como os povos negros escravizados no Brasil, mais precisamente na Amazônia, construíram algo tão grandioso, pedra sob pedra de forma completamente artesanal às margens de outra grandiosidade, o rio Amazonas? Um rio tão vasto, que até nos versos e prosas das cantigas e canções tradicionais que atravessaram tamanhas águas, obstáculos e chegaram, mesmo que às margens, em nossos dias, sendo tratado como “mar’.

Não é por acaso que no Amapá, o “Mar a baixo”por exemplo, nasce no palco deste rio, expressando as competentes remadas daqueles negros explorados nos navios negreiros; e mesmo que em forma de lamento cantavam e depois em terra faziam uma dança contida porque os pés estavam acorrentados. E como a Fortaleza, essa tradição segue viva e firme em festividades como a do Divino Espírito Santo, da Santíssima Trindade e de São Joaquim.

Do mesmo modo que davam voz ao lamento, também davam à alegria. Parece que aceitavam naturalmente que a “dança da vida” é mesmo assim, que nem a maresia de baixas e altas, de tristezas e de alegrias. Então manifestaram o Batuque, neste ritmo comemoravam as boas safras em épocas de colheita, e depois celebravam a liberdade quando veio a abolição da escravatura, com uma dança de muitos giros e gritos de alegria. Caixas de marabaixo, tambores e pandeiros eram e ainda são, os instrumentos, os meios que facilitavam a vivência dessas narrativas do corpo e da alma.

Para muito além da história que carrega uma tradição como essa – o ritmo, a dança e o canto, traduzem toda uma pedagogia de vida sustentável, que inclui as relações com o ambiente, com as coisas e com as pessoas. Parece ter sobrevivido, não como uma memória congelada no passado, mas como informação disponível no presente para o bem de nossa humanidade em meio a tanta acessibilidade tecnológica, que mesmo em condições precárias como é na região Amazônica, causa impactos muito destrutivos, quando são introduzidos, sem nenhum suporte educacional.

Conhecer pessoas, mestres e mestras como Dona Francisca Ramos Santos (Dona Chica) uma das matriarcas da comunidade quilombola do Curiaú, que fica a 12 Km de Macapá/AP, nos leva realmente a repensar nossas relações com essas práticas tradicionais que para nossa “sorte” –embora a maioria de nós não se dê conta disso – ainda estão vivas no Brasil. Dona Chica dança, canta, faz seu roçado e até cozinha a maniçoba, da sua própria festa de 94 anos, neste 26 de Junho de 2014,com tamanha vitalidade, mesmo tendo parido 11 filhos e levado uma vida de muito sacrifício para criá-los.

Convivendo alguns dias por aqui, podemos entender um pouco os motivos que parecem orientar o bem viver de Dona Chica e toda sua descendência. Pra começar, o lugar é cheio de poços d’água, lagos e lagoas belíssimas, algumas delas ainda vivas, como é caso do “Porto do Céu”, hoje conhecido como Lagoa do Índios. Também aconteciam fatos como na “Ponte do Encantado” que repetidamente desaparecia sempre que era construída e os adoecimentos inexplicáveis só começaram a acontecer por conta do “feitiço da geladeira”, pois antes desse utensílio chegar, a água vinha direto das fontes para os potes e bilhas de barro, conta Esmeraldina dos Santos, filha de Dona Chica, poetisa, dançante, cantadora e contadora das histórias de família. Assim, mundo real e imaginal conviviam confortavelmente e todas as associações e metáforas eram possíveis para explicar e resolver – ou não, as questões do dia-a-dia.

Sim, muita coisa mudou desde então, mas certamente Dona Chica ao lado do falecido marido, Maximiano dos Santos (Tio Bolão) plantaram tão profundamente essas raízes culturais e espirituais, quanto a mandioca que permanece sendo cultivada até hoje. E a vida em família, a educação, o trabalho, as artes e a espiritualidade continuam entrelaçadas e não separadas, como fazemos nas sociedades urbanas.

Hora acontece uma oficina de produção de instrumentos; de repente é a capina do terreiro comum a todos, depois já é a festinha de aniversário de uma criança; a brincadeira, o lazer e até os conflitos familiares. Tudo em constante e natural interação entre homem e natureza.

São códigos, sinais, linguagens de Comunic-Ação Criativa que vão desde o velho “sinal de fumaça”; quando se vê alguém carregando lenha ao longe, por exemplo, já se sabe que vai ter a festa do santo, ou quando se ouve os sons das caixas e dos tambores; ou ainda pelos animais, que de repente se revelam do meio da floresta como uma iguana se dizendo também habitante do lugar ou se deixando capturar como o jacaré que para a alegria da comunidade vai parar no prato do dia; e pra completar a dignidade reconstruída e expressa na autoconfiança em assumir a beleza dos traços étnicos. Linguagens que informam e também são capazes de transformar, pois falam de história, memória e ancestralidade; de possibilidades ignoradas ou excluídas, de talentos adormecidos e de dons congelados nas máquinas movidas pelo imediatismo. Para chegar aonde? E fazer o quê com tempo que nos sobra?

A vida no Curiaú, as expressões do Marabaixo e do Batuque me dizem que podemos viver e conviver entre raízes (tradição) e antenas (ciência); que é uma boa idéia fazer um “ladrão” dos valores humanos presentes nessas culturas, para cantar e dançar mais e mais para e trazer à consciência nossas memórias ancestrais. Talvez assim, possamos fazer uma “bandaia” de batuque, para comemorar verdadeiramente nossa liberdade. Para quem não sabe, os versos de marabaixo são chamados de ladrões, porque são criados – “roubados” de uma situação vivida por outra pessoa e as bandaias, se referem às cantigas alegres e festivas do batuque.

Mas na cidade de Macapá também temos boas chances de vivências, como no dia da Santíssima Trindade, 15 de Junho dentro do Ciclo do Marabaixo, quando a família da Dica Congó – outra mestra da tradição, já falecida, realiza a Festa dos Inocentes para as crianças, com direito a toques de marabaixo na igreja, depois uma farta ceia com o ritual dos doze apóstolos representados pelas crianças e em seguida, compartilhada com jovens , adultos e todos que chegarem, são muito bem vindos. E então é a vez da música mecânica incluindo o que toca nas chamadas “paradas de sucesso”, permitindo assim, a possibilidade de uma prática dialógica entre culturas, gerações e vivências. A partir desses níveis de informação, talvez tenhamos olhos de ver a Estrela Guia, a popular Estrela Dalva, que só abençoa quem já está “acordado” e pronto para o trabalho, como diz este ladrão de marabaixo: “Às quatro da madrugada quando Deus se levantou, pôs seus olhos no mundo e Jesus nos abençoou”.

*Maniçoba: prato típico do Pará, também presente no Amapá, que um dia foram um só Estado, o Pará

0 Comentários
Compartilhar
Sem Comentários

Comentar