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SEGREDO DA FLORESTA

Jul 08 2014

SEGREDO DA FLORESTA

Talvez nesta estação, esteja um dos mais importantes meios de Comunic-Ação Criativa; aquele que informa e provoca diálogos e interações com as possibilidades de transformação socio-cultural e pessoal no cotidiano; com nossas visões de mundo.

Para acessar esse meio de comunicação é preciso adentrar nos segredos da floresta, para compreender por que é tão vital preservar a biodiversidade amazônica e de todos os ecossistemas que ainda temos disponíveis no planeta. Pode ser uma aventura real e imaginária, sendo necessário em algum momento, caminhar por uma e pela outra dimensão. Tudo leva a crer, que assim podemos testar e ampliar a capacidade de alcance de nossas antenas, para captarem sinais de vida em nossas raízes, ou seja culturas tradicionais, ambientes preservados, identidades étnico[1]raciais, memórias corporais; e as múltiplas inteligências que se traduzem pelas inúmeras linguagens artísticas e criativas oriundas de nossa ancestralidade.

Estamos na cidade de Rio Branco no estado do Acre, a sudoeste da Região Norte, na fronteira com o Peru e a Bolívia, país ao qual o Acre pertenceu até o início do século XX. Aqui, segundo os geógrafos, temos a menor densidade demográfica do Brasil e onde está a última localidade brasileira a ter visão do sol nascente, na serra da Moa. Não deve ser por acaso que a palavra Acre veio do tupi a’kir ü que significa “rio verde” ou de a’kir, do verbo ker , de “dormir, sossegar”. Para completar, temos duas horas anteriores ao fuso horário de Brasília-DF; e logo que chegamos dá uma alegria danada, temos a impressão de que ganhamos duas horas a mais para realinhar nossas antenas e entrar literalmente em nossas raízes, noutro tempo, o do sossego.

Eis um dos segredos mais transformadores da floresta, o sossego. Em todas as formas de contato que tenho feito com pessoas que vivem e praticam suas tradições culturais e espirituais, esta tem sido uma chave comum a todos, para abertura dos seus canais de acesso à criatividade, aos dons adormecidos e aos talentos não vividos.

Conta a história que Rio Branco é um seringal que virou cidade, cuja formação étnica e sociocultural se originou do convício entre indígenas e nordestinos, que vieram em busca da borracha. Dividida pelo rio Acre, hoje conta com pontes que interligam os lados direito e esquerdo, chamados de primeiro e segundo distritos, respectivamente. Nasce às margens do rio, com imponentes gameleiras, nome que se aplica a figueiras, da família das moráceas, de valor medicinal e utilitário, com a qual no passado, se produzia barcos e utensílios domésticos. E na intimidade da cidade temos as honrosas seringueiras, que dão ao estado, o lugar de maior produtor nacional de borracha, portanto estão devidamente preservadas em parques como o Seringal Urbano Capitão Ciríaco, onde o látex ainda é extraído da forma tradicional, zelado pelo Mestre Aldenor Costa, da Marujada Brigue Esperança.

Neste contexto e dinâmica, entre urbanos, seringueiros ou ex-seringueiros e indígenas, estão mestres que guardam os baques da floresta, ritmo de origem nordestina com sotaque indígena, como o Mestre Antonio Pedro, que venho acompanhando de longe há três anos e finalmente pude vè-lo tocar e cantar ao vivo junto com Dona Carmem, sua companheira há cinquenta anos; mas não pude conversar. Cheguei no momento do sossego do Mestre Antonio Pedro, justamente quando ele sossega, para fazer suas garrafadas medicinais e produzir os enverseios, cantigas inspiradas que reúnem Ayahuasqueiras indígenas e o cristianismo nordestino, que contam da medicina da floresta, dos mitos, das lendas e encantarias da cultura seringueira.

Chama atenção um dos instrumentos tradicionais que utiliza na sua música, o “espanta cão” – um bastão indígena em formato de cruz, que mistura reco e pandeiro em formato de cruz. Vale registrar que também encontrei o “Espanta Cão” no Oeste do Pará, na tradição do Çairé da Vila de Alter do Chão. Lá, trata[1]se do nome do grupo de foliões; eles entenderam que a rabeca – espécie de violino popular, forma uma cruz quando é tocada e portanto, um símbolo que “espanta o cão”. Na época, foi motivo de piada, mas acabou pegando e de fato temos que concordar, que as cantigas, as músicas, os ritmos e rezas que essas tradições expressam, são tão ricas em criatividade, poesia, pureza, alegria e verdade, que inegavelmente são capazes de espantar qualquer “cão”; ah são!

Tanto é assim, que para esses mestres e sábias crias do “sossego” não há muito o que falar sobre suas criações; há o que perceber, o que experimentar, o que vivenciar, o que sentir, o que escutar por meio das diversas linguagens – da mente, das sensações, dos sentimentos, da intuição. Dessa forma, nos ensinam que a melhor explicação é a que vem de improviso, do agora; que emerge do silêncio, que nos permite formular as perguntas mais orientadoras e encontrar as respostas mais verdadeiras. É quando construímos e atravessamos as pontes entre os lados direito e esquerdo, simbolicamente as passarelas entre o primeiro e segundo distritos da cidade de Rio Branco. Transitar naturalmente entre esses lados é como voltar a utilizar igualmente nossos hemisférios cerebrais, o racional e masculino (esquerdo) e o criativo e feminino (direito). Um trânsito interrompido, quando o patriarcado bloqueou o acesso à via do feminino e nos perdemos, com pouco acesso e muita desconfiança da quietude, do sossego.

Hukena Yawanawá, uma jovem indígena de 20 anos de idade é um exemplo de quem reencontruiu essa ponte. Hoje toca violão, canta na língua materna, da família linguística Pano, cura com a medicina da floresta e sabe contar as histórias de seu povo. Por meio dessas linguagens, revela que só redescobriu sua sabedoria, quando forçada pela mãe, a primeira pajé mulher dos Yawanawá, passou por um longo processo de iniciação há pouco tempo, quando até então, rejeitava profundamente o fato de ser indígena e a idéia de viver na aldeia.

Hukena, ficou um ano no sossego da floresta. O que não quer dizer acomodada, “deitada em berço esplêndido” numa rede. O processo exige força de vontade, e muito trabalho interno, segundo suas palavras. O contato é com a natureza fora e dentro de si mesma, só tomando água dos frutos; sem carne, sem doce e sem sexo; na companhia do pajé e de um acompanhante que lhe ajude a não se desviar do caminho. Inclusive, foi dessa forma que também há poucos anos, sua mãe ajudou os Yawanawá a recuperarem suas tradições – pinturas corporais, artesanato, adornos, cantos, danças, brincadeiras e técnicas de cura e da medicina da floresta. Um saber que estava em poder dos homens, mas deixaram de praticar e também não compartilhavam, muito menos com as mulheres.

Os Yawanawá continuam nesse processo de recuperação; eles acordam muito cedo, porque acreditam que é com o nascer do sol que recebem os melhores conselhos; descobriram que há músicas tão sagradas que precisam ficar em segredo, não podem ser tocadas ao violão e nem ser ouvidas por qualquer pessoa; que os sonhos devem ser sistematicamente estudados porque é através deles que os males do corpo e da alma podem ser curados; e que as histórias são guias seguras para recuperarem suas danças, músicas e cantos.

São meios de Comunic-Ação da mais refinada tecnologia social. Até “saiti” eles têm; e não se trata de um espaço na internet com textos, gráficos e informações multimídia. Mas é um diverso espaço de informação sim; o termo saiti designa festa e significa gritar. Para os Yawanawá, não há uma data ou um momento específico para se fazer um saite, basta que a comunidade esteja vivendo em harmonia. Então é hora de se reunirem e expressarem em alto e bom som a alegria de viver, com músicas, cantos, danças e brincadeiras, desde a boca da noite até o sol raiar. Se foi e continua sendo assim para eles, por que não pode ser para nós também, que trazemos essas matrizes na nossa formação étnica e cultural? Que no reconhecimento, no contato e na troca dialógica com esses saberes, possamos criar e produzir nossos “saiti’s” e expressar nossa alegria genuína; aquela que brota do trânsito entre as vias da direita e da esquerda; que nos leva ao segredo da floresta; seja no meio da natureza ou conhecendo nossas histórias e lendas, mesmo que imersos no turbilhão das grandes cidades, sempre há nessa jornada, um recanto bem sossegadinho… onde habita a fonte da sabedoria.

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